Ajudo a que as pessoas sejam respeitadas como seres humanos

31 Janeiro 2017

No final do verão de 2013 entrei pela primeira vez no IN-Mouraria, um centro virado para a saúde e redução de danos para pessoas que utilizam ou já utilizaram drogas.

Necessitava de medicação e não tinha como a obter, ou ia roubar ou pedir. Nunca gostei de pedir nada a ninguém mas, na situação em que estava, não tinha outra opção. Estava no Intendente a falar com um amigo e a dizer-lhe isso mesmo. E ele trouxe-me até aqui. Para mim, que sou uma pessoa com dificuldade em aceitar horários, regras, psicólogos, assistentes sociais, médicos, o primeiro impacto com o ambiente do IN foi bastante descontraído e informal, estavam ali muitas pessoas conhecidas e muitos deles consumiam comigo.

Entrei e explicaram-me os serviços e quando lhes disse a finalidade da minha ida, encaminharam-me para a assistente social. Nesse atendimento chorei, sem motivo ou por todos os motivos do mundo. Para mim era inadmissível chorar perante uma desconhecida, além do mais, pertencente a uma profissão que eu sempre desvalorizei e critiquei. Mas sentir que alguém realmente se preocupava comigo desmontou toda a minha estrutura defensiva, e mostrei a minha fragilidade. Não só a medicação que necessitava, mas também a carência de diálogo e atenção. Muitas emoções relacionadas com uma vida desestruturada, consumos excessivos, muitas penas de prisão e uma família que nunca esteve presente. Nesse dia, falei com três membros da equipa e não fiz nenhum registo. Levei a medicação, agradeci a todos e fui para casa a pensar no projeto.

Assim, comecei a reduzir os consumos e a frequentar mais o IN-Mouraria. No início ia mais para que me apoiassem a nível de serviços administrativos, saúde e judiciais, usava a Internet, telefone e por vezes jogava às cartas com o pessoal que ali estava. Precisava de retomar a medicação. Incentivaram-me e eu dei os passos para isso. Fui a uma primeira consulta e comecei a tomar a medicação com regularidade.

A partir daí comecei a reconsiderar as minhas prioridades, a medicação, a casa e o trabalho. Em tudo isso fui apoiado pela equipa. No fundo, o IN-Mouraria foi o início da mudança na minha maneira de ver e viver as coisas. Estava cansado e sabia que estava a matar-me com os consumos. Foram muitos anos sem responsabilidades, uma vida de rua, drogas, roubos, tráfico, intrujices, dealers, prostitutas, proxenetas, prisão, etc. Tinha sido essa a minha vivência desde que saí de casa com 13 ou 14 anos.

A frequência com que ia ao IN mantinha-se, às vezes estava uma semana sem lá aparecer mas quando voltava trazia sempre mais alguém comigo. Sou o Nº 71, actualmente estamos mais ou menos com 700 utentes. Sei que grande parte dos utentes que vieram, posteriormente a mim, ou foi por meu intermédio ou por intermédio de um amigo que eu tinha levado e que trazia mais um amigo.

O que mais admirava no IN era as pessoas serem consideradas iguais, e haver no espaço uma grande convergência de todo o tipo de pessoas. Sempre vivi num meio em que se discriminava e estigmatizava pela raça, orientação sexual, religião e, muitas das vezes, por se ter uma ideia e viver de forma diferente. No IN era outro mundo, mais saudável, aberto a todos e com espaço para todo o género de pessoas. Fazem-se milagres humanos e o pouco torna-se muito e do pouco faz-se uma divisão justa e equitativa.

Em Agosto ou Setembro de 2015 propuseram-me integrar a equipa do projeto, estávamos no quarto das arrumações e eu não esperava. Nesse dia saí do IN e passei pelo Bar Sacristia, não para ver o Padre mas para falar com o meu amigo Adriano. Como sempre, pedi-lhe um branco com mistura e falei-lhe da proposta. Ele sabia do projecto e tinha conhecimento da minha estima por ele. Sabia também que tinha deixado as drogas ditas duras em grande parte por frequentar esse espaço. Mas tem uma perspetiva diferente das coisas, é meu amigo e diz-me as coisas na cara. Disse-me que ia ser um problema por causa do tipo de trabalho. Teria de lidar todos os dias com o tráfico e consumo, sendo eu próprio um consumidor de há muitos anos. Se aceitasse o trabalho iria ser uma luta difícil. Falou-me na minha personalidade e de quanto sou confrontador e agressivo, falou-me da minha dificuldade em receber ordens, expôs-me a uma série de fatores contra. Mas também me disse que era melhor do que me sair o Euromilhões.

Não estava muito certo do que seria melhor, não estava a ver bem o papel que teria. Como também não sou muito de matutar nas coisas que só serão futuro se estiver vivo, dei tempo ao tempo e aceitei a proposta.

O primeiro dia de trabalho e os seguintes não foram assim tão problemáticos. Fui apoiado para me ambientar ao trabalho, já que o espaço e as pessoas tinham sido a minha companhia durante muito tempo. Esses primeiros dias foram também para dar a conhecer aos outros utentes que estava ali a trabalhar. Quando estava com os meus amigos felicitavam-me. Muitos outros achavam absurdo e perguntavam-me. Quando explicava ficavam mais esclarecidos e até vinham e vêm ao espaço. Como em todo o lado, existe sempre quem não vai com a tua cara e isso sucede pontualmente. Mas como em tudo, primeiro estranha-se depois entranha-se e eu fui sendo cada vez mais aceite pela maioria dos utentes.

Identifico alguns aspetos que me fizeram continuar no projeto e que facilitaram a minha integração enquanto novo mediador de pares:

- No início deram-me um horário reduzido.
- Estiveram sempre disponíveis quando eu precisava.
- Deram-me formação sempre que necessitava e mesmo quando eu não me apercebia estava em formação.
- Tratam-me da mesma forma que eu a eles, sou particularmente peculiar a tratar as pessoas, sempre com respeito mas com uma linguagem muito minha.
- Aceitam as minhas opiniões e sugestões, e também discordam comigo com respeito e frontalidade.
- Continuam a ser pessoas amigas e compreensíveis quando não estou nos meus melhores dias. E são muitos.

Ao longo deste ano fui definindo o meu trabalho como Par: a disponibilidade para ouvir, estar atento a situações de risco como agressões, consumos descontrolados, fragilidades e carências sociais de certos utentes. Ajudar a que sejam respeitados como seres humanos e com direitos em todos os serviços, elucidar e aconselhar da melhor forma como se podem resolver os problemas. E também aprender eu próprio a ser humilde, modesto e compreensivo, porque nada se faz sozinho e não se sabe tudo. Já dizia o outro; “Só sei que nada sei” e no trabalho de Par vamo-nos adaptando às circunstâncias, tanto das pessoas como das situações que se nos deparam.

Com o tempo fui-me especializando em fazer acompanhamentos. Ir com as pessoas aos serviços, apoiá-las em ter acesso aos serviços, transmitir informação credível é muito importante para que o trabalho dê frutos.

Saber programar um acompanhamento e ter informação disponível para que seja bem-sucedido é um trabalho de Pares em conjunto com a restante equipa. Esse conhecimento é imprescindível para os Pares, o saber que existe legislação, uma portaria, uma lei ou um tratado, e em muitas situações ajuda o trabalho que se tem de fazer. Isso tem de ser com formação ou uma pesquisa do Par, o que é um trabalho suplementar e, por vezes, desgastante.

Não basta ter-se sido consumidor de drogas, trabalhador sexual, ladrão, sem-abrigo para se ser um Par.

Mais, um verdadeiro Par, tem um trabalho de terreno que não é valorizado e na maioria das vezes é um trabalho fundamental para a sinalização de casos extremos. Esses casos envolvem pessoas que não têm ninguém e muitas vezes migrantes que precisam não só de apoio institucional, mas de apoio psicológico e emocional.

No entanto nem tudo é positivo. Os dias em que estás para fazer um acompanhamento e não aparecem os utentes. Aqueles dias em que te surgem funcionários ou médicos mal-humorados, as horas de espera nos hospitais e serviços públicos, o tratamento que, por vezes, nos dão devido a sermos vistos como pessoas que usam drogas, enfim, o estigma social não é fácil de se ultrapassar. Por isso mesmo o trabalho de um Par é indispensável num projeto desta natureza.

Saber ouvir, falar, esclarecer, encaminhar e acompanhar quando necessário, ser advogado de pessoas que não sabem os seus direitos ou que têm receio do estigma social. Esse é o meu trabalho e gosto dele.

Obrigado por me darem oportunidade de fazer o que gosto, embora eu seja um Andarilho e tanto estou aqui como ali!

Renato Pinto