Iniciativa Cidadã para a Regulamentação Responsável da Canábis para Adultos
16 Setembro 2021
Carta aberta de cidadãos e cidadãs à Assembleia da República
Proposta de Cinco Princípios para a discussão sobre
a Regulação Responsável da Canábis
Vinte anos após a aprovação da política de descriminalização do consumo, redução de riscos e danos, tratamentos e prevenção, reconhecida internacionalmente - e quase unanimemente a nível interno - como um grande sucesso e exemplo, Portugal vive um novo momento que deve servir para clarificar e melhorar a eficácia das políticas públicas de drogas, na defesa da saúde pública e individual, do Estado de Direito e do combate ao narcotráfico.
Neste momento, estão em discussão na Assembleia da República, na Comissão de Saúde, projetos de lei apresentados por dois partidos que preconizam a legalização da canábis. Consideramos esta questão civilizacionalmente muito importante e queremos dar o nosso contributo inicial para uma discussão informada e responsável, com expetativa positiva porque na discussão na generalidade destes projetos, deputados de outros partidos políticos — todos, em conjunto, representando um amplo espetro político —, manifestaram abertura para uma discussão séria e profunda, assinalando desafios relevantes, sobre a regulação da produção, venda e consumo da canábis por adultos. Tal como no debate que decorreu em 2000, é de novo desejável obter o consenso mais alargado possível. Para atingir este objetivo, a análise e o debate devem basear-se na defesa dos direitos humanos das pessoas que usam substâncias psicotrópicas e/ou aditivas ilegais, em factos, em juízos empíricos e em pragmatismo.
RAZÕES PARA CONSIDERAR A REGULAÇÃO DA CANÁBIS EM PORTUGAL
A descriminalização do consumo permitiu a criação de importantes dispositivos que permitiram a recolha e a análise de dados empíricos sobre a situação do país no que diz respeito ao consumo de drogas. A longa experiência portuguesa permite, portanto, uma avaliação informada, pragmática, ponderada e prudente que nos revela:
O paradigma de proibição da venda e consumo de canábis não teve efeito na redução do seu consumo, que continua a aumentar e tende a normalizar-se socialmente. Os números do mais recente relatório do SICAD (Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências) refletem esta normalização: entre 2012 e 2016, o consumo de canábis ao longo da vida entre a população portuguesa subiu 1,5% — de 8,2% para 9,7% —, com particular incidência nos jovens adultos. Destes eram 14,4% em 2012 os que assumiam tal consumo ao longo da vida, percentagem que em 2016 passou para 15,1% (De acordo com o European Cannabis Report, o mercado clandestino de canábis em Portugal vale, pelo menos, 106 milhões de euros por ano: em 2019, foram apreendidas 12 077 plantas, o que representou um aumento de 39% em relação a 2018.
A venda de canábis no mercado ilegal está a provocar um efeito perigoso em termos de saúde, tendo-se verificado um aumento descontrolado e contínuo da potência da canábis (ou seja, da percentagem de THC, a componente psicotrópica da planta). Entre 2006 e 2016, a percentagem de THC na resina de canábis (haxixe) aumentou de 8% para 17%. O Relatório Europeu sobre Drogas de 2021, do Observatório Europeu da Drogas e da Toxicodependência (OEDT) indica que a resina de canábis vendida na Europa tem um teor médio de THC entre 20 e 28%, o que a torna suscetível de aumentar a possibilidade de efeitos psicóticos e de dependência. Também o aumento do consumo de canábis de origem sintética tem associados mais riscos.
Assim, conscientes das reformas legislativas no Canadá, Uruguai e em vários estados dos EUA que levaram à regulação da canábis e têm já com muitos anos de avaliação, e da discussão avançada que decorre noutros países;
Reconhecendo que a canábis não é uma substância inócua, cujo uso deve ser prevenido e desaconselhado eficazmente;
Um conjunto de cidadãs e cidadãos de diversas áreas e perspetivas, vem propor 5 princípios para a regulamentação responsável da Canábis:
- Definir os objetivos de forma clara e partilhada. A regulação da canábis é uma política pública que deve assentar em objetivos estudados, explícitos, transparentes e pragmáticos. Apela-se a que os intervenientes nesta discussão complementem os seus legítimos pontos de partida assumindo os elementos de convergência e aproximação. Regular a canábis deve servir para defender a saúde e combater a criminalidade, financiando esses objetivos com os impostos sobre o setor da canábis. As medidas concretas devem fazer com que o consumo migre do mercado ilícito para o mercado controlado, tomando todas as precauções necessárias e investindo na prevenção do uso para que não haja um aumento de consumo, sobretudo junto das pessoas mais jovens e vulneráveis.
- Proteger a saúde. A regulação responsável do uso por adultos da canábis deve ter como principal objetivo proteger a saúde daqueles que usam esta substância, sobretudo os consumidores mais vulneráveis e terceiros. Neste ponto, a legislação deve: (i) definir uma idade mínima de consumo (ii) limitar o nível máximo de THC dos produtos vendidos, i e ii de acordo com o melhor conhecimento. disponível (iii) definir regras sobre o cultivo e produção orientadas para a proteção da saúde e do meio ambiente (por exemplo, definindo os pesticidas autorizados); (iv) proibir e punir a condução de veículos e máquinas sob o efeito da canábis e equipar as forças de segurança com os meios necessários para o respetivo controlo; (v) criar obrigações de informação do consumidor no ponto de venda sobre o conteúdo e os riscos dos produtos, designadamente os riscos de dependência, as formas para reduzir o risco e as alternativas para tratamento, através da indicação das organizações e dos serviços públicos a contactar.
- Combater o mercado ilícito. A regulação do uso responsável da canábis por adultos deve ter como objetivo combater atividades criminosas, eliminando progressivamente o mercado ilegal de canábis e o crime económico-financeiro, entre outros, que lhe está associado. Para isso, deve utilizar os instrumentos necessários para conseguir que a canábis seja produzida e comprada no circuito do mercado lícito, controlado e seguro. Neste sentido, a legislação a aprovar deve: (i) conter medidas para um estrito controlo das pessoas singulares e coletivas envolvidas no cultivo, produção, distribuição e venda de canábis; (ii) conter medidas de rastreabilidade do produto desde a semente à venda final, impedindo assim quer a introdução no circuito de canábis de origem ilícita, quer a venda em mercado ilícito;
- Tributar para investir na prevenção e informação. A transição da produção e venda de uma substância consumida anualmente por centenas de milhares (500 000 de acordo com os últimos números públicos respeitantes a Portugal) para o mercado lícito permitirá ao Estado arrecadar nova receita fiscal. Neste ponto, a legislação deve (i) criar um imposto especial sobre a canábis que tenha o duplo objetivo de arrecadar receita, mas também de modelar os padrões de consumo para que sejam atingidos os objetivos descritos em (1) através da intervenção no preço — por exemplo, criando um preço mínimo; tributando de modo progressivo produtos com concentrações de THC mais alto; (ii) consignar parte da receita fiscal arrecadada ao reforço da prevenção de novos consumos, e ao investimento no dispositivo de redução de riscos e minimização de danos, bem como nos meios responsáveis pelo tratamento. A intervenção dos impostos no preço da canábis deve ter em atenção o delicado equilíbrio entre o objetivo de eliminar o mercado ilícito — o preço da canábis legal tem de competir com os preços do mercado ilícito de forma a incentivar a transição dos utilizadores para o mercado regulado — com o objetivo de prevenção geral. Dito de outra forma: a canábis não pode ser tão barata que pelo baixo preço aumente o consumo junto das populações mais jovens, nem tão cara que torne atraente o mercado ilegal.
5.Regular gradualmente, avaliar periodicamente. A regulação do uso responsável da canábis deve assentar numa ideia de gradualismo e avaliação regular com o objetivo de permitir o ajuste das políticas em resposta à evolução médico-científica. Neste sentido, num primeiro momento, (i) devem ser consensualizadas as formas de produção, bem como (ii) devem ser consensualizadas as formas de apresentação autorizada cujo consumo seja potencialmente mais perigoso. Pelas mesmas razões, pelo menos num primeiro momento, (iii) devem ser restringidas as importações de produto final. Deve ser criada uma estrutura transversal de acompanhamento contínuo da nova política de regulação do consumo responsável da canábis, a funcionar em princípio no SICAD mas sempre com o reforço de meios.