Rosário Costa: "Se alguém me dissesse que eu ia trabalhar como par, a apoiar a minha comunidade, eu nunca teria acreditado."

26 Dezembro 2023

"Parte da solução: Trabalho sexual, saúde pública e (des)criminalização", foi o tema da conferência organizada pela European Sex Workers Rights Alliance, em Bruxelas. Rosário Costa, par no GAT IN Mouraria, que sentiu o estigma como trabalhadora sexual e utilizadora de drogas, discursou em dois dias do evento.

A assinalar o Dia Mundial do VIH/Sida e o Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres, a conferência pretendeu reunir pessoas que fazem trabalho sexual, investigadores, prestadores de serviços e decisores políticos para traçar estratégias sobre temas relacionados com trabalho sexual e saúde.

No primeiro dia do evento, Rosário Costa participou no Workshop sobre Estigma e Discriminação para Profissionais de Saúde e Decisores Políticos. A finalizar o evento, foi promovida uma reunião pública no Parlamento Europeu onde o GAT discursou pela voz de Rosário Costa, com a presença do representante da ONU sobre o Direito à Saúde, Dr. Tlaleng Mofokeng, e a eurodeputada Marisa Matias.

Num discurso impressionante, Rosário partilhou o seu percurso desde o início do trabalho sexual até ser trabalhadora par no GAT IN Mouraria. Foi enaltecida a importância dos serviços comunitários com pares das comunidades, de forma a destigmatizar os serviços de saúde.

O discurso na íntegra pode ser visto no Youtube e está disponível neste artigo.

 

Declaração de Rosário Costa, GAT IN Mouraria (GAT Portugal)

Chamo-me Rosário Costa tenho 49 anos, sou mulher, sou mãe, sou avó. Para além disso, hoje em dia trabalho como par no GAT IN Mouraria, do Grupo de Ativistas em Tratamentos, num centro de redução de danos para pessoas que usam drogas e pessoas em situação de sem abrigo. Usei drogas durante 30 anos, iniciei tratamento há cerca de 8 anos e fui trabalhadora sexual durante 15 anos. O meu percurso foi longo e, muitas vezes, não foi fácil.

COMO CONHECI O GAT

Há cerca de 12 anos, quando fazia trabalho sexual nas ruas de Lisboa e Almada, conheci a unidade móvel do GAT enquanto utilizadora do serviço. Naquela altura, sentia-me discriminada por tudo e por todos: pela sociedade, pela família, pelos serviços sociais e de saúde. Era vista ora como doente, dependente, ora como mulher transgressora, incapaz de tomar conta de si e dos seus. Isso fazia com que me afastasse de qualquer oferta de ajuda ou de qualquer serviço.

No entanto, à medida em que fui conhecendo as pessoas da unidade móvel do GAT, eles foram ganhando a minha confiança porque pela primeira vez, fizeram-me sentir aceite, não me julgavam e senti que se preocupavam comigo. Senti que podia ser sincera, seguir o meu ritmo, as minhas necessidades e que a minha voz era ouvida, sem imposições ou julgamento. Ao acreditarem em mim, ajudaram-me a voltar a acreditar em mim também.

As primeiras pessoas que conheci no GAT eram trabalhadoras pares e o seu papel foi essencial para o meu processo. Identifiquei-me com estas pessoas com as quais partilhava experiência de vida e que falavam a mesma linguagem que eu, e percebi que não estou sozinha. A abordagem de um trabalhador par é diferente porque há um espaço de partilha e de experiências que apenas nós conhecemos, o que permitiu que não me sentisse em qualquer momento criticada.

O QUE É TRABALHAR COMO PAR JUNTO DA MINHA COMUNIDADE

Se, há uns anos, alguém me dissesse que eu ia trabalhar como par, a apoiar a minha comunidade, eu nunca teria acreditado. Eu nem sabia o que era um “par”, não acreditava no poder da minha voz, das minhas vivências e da minha comunidade. Este meu caminho enquanto mulher par que utilizou drogas e que fez trabalho sexual tem sido uma constante aprendizagem e crescimento.

No meu dia a dia, tento ser para os outros tudo aquilo que um dia foram comigo e me permitiu ser quem sou hoje. Procuro sempre receber as pessoas com um sorriso e de braços abertos (mesmo que por dentro esteja a chorar) e criar relações de confiança, suporte e segurança. O e ser muito agitado, mas estarei sempre disponível para ouvir a pessoa quando ela precisa, porque sei que por experiência própria que é assim que se ganha a confiança das pessoas.

COMO É QUE AS MULHERES SÃO OLHADAS?

Os tempos mudam. Mas, nós, trabalhadoras do sexo e mulheres que usam drogas, continuamos a ser colocadas à margem da sociedade. Sempre que me assumi como trabalhadora do sexo e utilizadora de drogas, senti que o preconceito das pessoas. Não somos vistas como pessoas com direitos, liberdades e garantias; não somos vistas como pessoas merecedoras de um acolhimento e acompanhamento digno que nos é devido enquanto cidadãs; os decisores políticos, os serviços e a sociedade, ora questionam a nossa capacidade de tomar decisões sobre a nossa própria vida, ora moldam a nossa existência segundo as suas vontades (e não as nossas).

Sabemos que esta discriminação nos afasta dos serviços, que nos afasta dos nossos direitos. O estigma mata-nos. Foi este estigma que me levou a ter de me separar dos meus filhos, viver na rua, e fazer trabalho sexual para sustentar o meu consumo. Estamos fartas de ser discriminadas pelas nossas famílias, agredidas pelos nossos companheiros, maltratadas pelos serviços.
Acredito que com o apoio de serviços de base comunitária, como o GAT, que têm pares a trabalhar nas equipas e nos fazem sentir reconhecidas como pessoas, nós, trabalhadoras do sexo e mulheres que usam drogas, vamos conseguir unir-nos e exercer os nossos direitos e escolhas sobre as nossas próprias vidas.